segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Texto: O homem invisível

Tem um homem deitado no chão da praça. Suas mãos em concha deixam claro seu objetivo. Seus olhos estão fechados, como se estivesse rezando.
Passam vários outros homens. Não param. Não olham. Não pensam. Só passam.
Parecem saber alguma coisa. Mal sabem que o que lhes espera, espera também o homem deitado no chão da praça.
Cai uma moeda. O homem do chão sorri, sem abrir os olhos, deixando à mostra seus poucos e amarelados dentes.
Dia após dia a mesma coisa. O homem cata as migalhas para comer. Como uma pomba. Mas não pode voar. Ainda.
O homem deitado no chão da praça não vive. Sobrevive. O homem deitado na praça não dorme. Desmaia. O homem deitado na praça não pensa. Age.
Tem um homem deitado no chão da praça. Suas mãos em concha deixam claro seu objetivo. Seus olhos estão fechados, como se estivesse rezando.
Passam vários outros homens. Eles não pensam, não param, não olham. Eles passam. Passa um cachorro. Para. Lambe a cara do homem deitado no chão. Dá três ou quatro passos para trás. Começa a ganir. Depois de um tempo vai embora.
Os homens não vêem. O homem não está deitado no chão. Está jogado. Quem o jogou lá foram outros homens.
Agora o homem não agradece mais as moedas com seu feio sorriso.
O cachorro não chega mais perto. Parece temer algo.
Os homens agora param. Parecem se interessar. O cheiro os espanta. Logo não passam mais homens ali.
Voa um abutre. Pousa. Come. Ninguém nota.
O abutre acaba sua refeição. Os homens voltam a passar por ali.
É como antes.
Não houve nada. Ou ninguém viu.

domingo, 2 de setembro de 2012

Texto: Maré alta

Você se lembra? Eu lembro tudo! Como se fosse ontem, hoje, amanhã. Não. Amanhã não. Amanhã estou ocupado, tenho que fingir fazer as obrigações que dizem ser minhas. Mas hoje. Como se fosse hoje.
Provavelmente amanhã também. Fingirei fazer minhas obrigações (?), mas a quem engano? Ainda lembrarei. Talvez perceba até mais detalhes.
Sabe, outro dia me veio uma revelação. Lembra daquela cor que eu não sabia qual era? Não deve se lembrar, algumas pessoas tem o dom de esquecer o que querem. Mas faz um esforço, a memória já vem. Bom, adivinhei a cor. Isso mesmo, depois de tanto tempo, dá pra imaginar?
Qual é? Vamos deixar para o fim, pode ser? Não que tenha muito o que falar também, quase nada, mas deixemos para o fim a cor, já nos dá um motivo para prolongar o nosso diálogo com indícios de monólogo.
Como vai? Passa bem? Mentirosa! Quem me dera poder olhar na sua cara, nos seus olhos e perceber a dificuldade que tem para manter a pose. E que pose! Um sorriso no rosto, talvez até desnecessário, e uma risada semi-alegre da qual já gostei mais. Ainda não sabe controlar os olhos, estes divagam a cada chance numa lembrança.
Minhas lembranças são mais fortes. Sou um vidente às avessas, posso ver todo o passado e todos os caminhos que não seguimos. Que não segui. Que segui sozinho e me perdi. Não sei. Pouco importa. Eu não esqueço nada.
Tanto faz. Estou pronto. Vou embora. Há quem ache que já fui. Não, esperei. Você não apareceu. Adeus. Adeus. Parto. Desse parto nascerá um novo eu. Nascerá, já nasceu, nascerá, já nasceu. Não, não nasceu. Mas nascerá. Já não é possível realizar o aborto. Tarde demais. Será? Serei. Serei o Poeta do Fim do Mundo, relatarei a beleza do caos a se impor sobre a beleza do amor. A beleza de um relâmpago toma o lugar do pôr-de-sol. Os últimos suspiros o lugar dos suspiros de amor. As tempestades o lugar das calmarias.
Entre as cartas de amor rasgadas e não enviadas, entre as flores jogadas no lixo e as recebidas sem entusiasmo, entre as últimas esperanças tolas e as esperanças já acabadas, caminho eu.
Tombasse o medo do céu, lutariam pela sobrevivência também os apaixonados. O verdadeiro amor, suicídio, não sobreviveu. Foi esquecido entre os ridículos filmes hollywoodianos.
A última carta de amor de um soldado há de encontrar sua amada perdida nos braços de outro homem. Eis o amor, traidor dos iludidos.
Os gemidos e rangidos das inúmeras camas dos motéis mais baratos da Cidade culpam o governador pela sujidade da raça humana.
Esqueça, deixe as lembranças comigo. Eu não esqueço nada. Não permitem. Não me ajudam. Eu não esqueço nada.
O meu maior pesadelo é acordar toda manhã dos sonhos que não foram reais. Eu não esqueço nada.
A minha esperança foi esperar desesperado um acontecimento inesperado. Não veio. Eu não esqueço nada.
A cor? Sim, a cor, voltemos à cor. Teus olhos são verdes da cor do mar. Eu, Lua, já controlei estas marés. Devo ter errado, não sei. Finjo não saber. Finjo saber. Sei. Não, não sei. Descobriria, mas agora estou afogado nesta maré alta que devo ter causado. Eu não esqueço nada.
Não. Bandeira branca. Eu desisto. Não posso mais. Não quero mais. Deixem-me sozinho, preciso de companhia. Eu não esqueço nada e as minhas memórias tem tal força que podem povoar também os seus sonhos!
Serei agora o Poeta do Fim do Mundo, a cantar em versos brancos a beleza do caos. Alguns iludidos ainda tem esperanças de que tudo isso acabe em soneto. Não há esperanças. Eu sei. Eu não esqueço nada.