quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Texto: Maldição

Fui teu espelho. Quebraste-me. Terás 7 anos de azar. Ainda busco refletir (aos cacos) o tempo que custa a passar.
(Asas de morcego, teias de aranha. Antes não sabia, mas o teu amor arranha.)
Maldigo-te: Que por me escapar na tua forma física não possas escapar jamais aos teus próprios sonhos! Que estes sejam felizes a ponto de tornar cada despertar um pesadelo! Que eu lhe povoe o pensamento e que você perceba que tens a eterna opção de regressar à felicidade que finge repudiar!
Teus feitiços são mais fortes.
(Lágrimas de um amor perdido, pedaços de um coração partido. Quem um dia foi amor, não será só conhecido.)
Com que facilidade rompem-se os laços d'alma que tivemos! Com que desenvoltura finges não me ou te conhecer! Com que força sustentas a farsa que vives! Com que magia negra faz-me sempre pensar em você!
(Palavras de ternura, dias de felicidade. Minha maldição é sentir tanta saudade.)
Fui teu espelho. Quebraste-me. Por ódio à tua própria imagem acabas por destruir os laços que te prendem à realidade. Fui teu espelho. Quebraste-me. Terás 7 anos de azar e eu outros tantos de lembranças mais felizes do que eu gostaria que fossem.
(Confissões engasgadas, segredos compartilhados. Para sempre hão de doer os nossos laços cortados.)
Que existas por tempo indeterminado e que seja incapaz de esquecer as almas que tocaste. Que teu infinito te consuma em fogo lento e que o brilho de tua vida insista em habitar os lugares onde não estiveste. Que tenha a certeza de estar sempre incerta quanto a tudo e que não possas ser feliz na solidão de ser uma só.
(Olhares desviados, sonhos amassados. A memória sempre reina nos corações mais cansados.)
Busca tuas luas, Ismália. Busca teu brilho, tua loucura, tua felicidade. Mas eu te amaldiçoo. Que não possas, jamais, ser verdadeiramente feliz enquanto não obtiver o perdão das almas que deixou. Que a solidão não te baste e que sem um espelho não se possas ver por inteira. Que mudes quem é para descobrir que foi melhor antes. Que qualquer dia acordes pensando no que fez da tua vida e saibas exatamente onde errou. Que chore então as lágrimas do arrependimento e que lide com a irreversibilidade dos ferimentos de alma.
Fui teu espelho. Quebraste-me. Mas também se rompeu no processo.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Texto: Veja bem

A gente se vê por aí, andando na rua se vê.
A gente se vê por aí sem nunca marcar de se ver.
Se a gente se vê, certo dia (bem pode acontecer)
Pode ser que a gente pudesse um dia marcar de se ver.
E se um dia andando na rua meu olho direito te vê
(e o esquerdo depois alertado logo já encontra você)
Não se faça de desavisada quando eu for falar com você
Falando que a gente podia um dia marcar de se ver
Mas se o meu olho te perde e eu não encontro você
Andando na rua ou no parque, apressada, sem tempo a perder
A gente se vê por aí, andando na rua se vê
A gente se vê por aí sem nunca marcar de se ver.

Viu só?

domingo, 1 de dezembro de 2013

Lista: Coisas que voltam

Boomerangs bem lançados.
Dores crônicas.
Cachorros perdidos que sabem farejar.
Cachorros abandonados que sabem farejar.
Doenças que não foram completamente tratadas.
Pessoas que foram viajar.
Pessoas que foram morar em outro lugar e não gostaram.
Mentiras mal contadas.
Pombos-correio.
Cartas com destinatário inexistente.
Namorados que não deviam ter terminado.
Namorados que deviam ter terminado mas mesmo assim voltam. Umas dez vezes. Depois brigam de vez.
Os motivos para terminar em todas as dez vezes, obviamente.
De vez em quando as bolas que a gente chutou pro terreno do vizinho.
Bons filhos às suas casas.
Barriga depois de um regime mal feito.
Brincadeiras de mau gosto ("Vai ter volta!")
Lembranças.
Pessoas que a gente espera nunca mais encontrar de novo.
Amores velhos.
Não. Amores não ficam velhos.
Amores.
Gente que reencarna depois da morte.
Espíritos.
Espíritas.
Espirros.
Bocejos.
Tosses.
Torcicolos.
O Palmeiras pra primeira divisão um ano depois de cair.
O que a gente faz quando bebe.
O que a gente planta (e depois colhe).
Trabalhadores ao fim das tardes.
O verão todo fim de ano.
O inverno todo meio de ano.
O outono e a primavera eu não sei direito em que mês, sempre me confundo.
Papai Noel.
Gente arrependida que foi embora e percebeu que não devia.
Coisas que a gente joga pra cima.
Coisas que a gente joga pra baixo e pingam.
Fome depois de algumas horas sem comer.
Sede a mesma coisa.
Vontade de ir ao banheiro.
Mau cheiro e necessidade de tomar banho.
Ela ("Mas ela vai voltaaaar! Mas ela vai voltaaaar!").
What goes around.
Você pros meus pensamentos.
De novo.
E de novo ainda.
E quando eu acho que não volta mais, de repente já tá lá (já tá lá. já tá lá. já tá lá.) de novo.
E junto volta a indecisão.
Volta a vontade de fazer o que não devo.
Volta a vontade de fazer o que não devo com você.
Volta o frio na barriga.
Volta a sensação de ter 12 anos e de ser um completo imbecil.
Volta a vontade de te ver a cada cinco minutos.
Volta o medo de te ver a cada cinco minutos e gostar mais do que devo.
Volta a lembrança dos seus olhos.
E dos seus cabelos.
E de outros atributos, bem ou mal sou humano.
O som da sua risada.
A cafonice, como todos podem perceber...
A vontade de ser feliz pra sempre.
A vontade de ser feliz por um segundo.
A cleptomania de roubar mais um beijo.
O desejo de fazer uma pergunta:
Já que você volta, por que não fica?
:)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Texto: Corpo e alma

Meu caro, quanto tempo!
Não é? Parece que passou uma eternidade sem a gente se ver?
É mesmo, é mesmo! No mínimo uns quarenta anos, eu diria. Que engraçado, não é?
Ah, engraçado eu não digo. Mas são coisas da vida também.
Sim, sim. A vida...
Hahaha, já vai reclamar?
Não, reclamar não. Só fazer algumas observações, nada demais.
Pois bem, o que você achou?
Ah, para falar a verdade nem deu pra reclamar... Dois filhos, uma família que me amava, não me divorciei, viajávamos bastante... Os filhos cresceram, viraram grandes pessoas, por mais que eu ainda tenha demorado a perceber que já não eram mais crianças. Só no meio de tudo isso me faltou tempo pra descobrir o sentido de tudo isso.
Ah, entendo perfeitamente. Também não reclamo.
Não? Sem a menor vontade de ofender, mas você não parecia ser a pessoa mais bem resolvida...
Questão de ponto de vista, meu velho. Questão de ponto de vista. Não estudei, não me casei, não tive filhos dos quais eu tenha ficado sabendo. Economicamente passei por períodos difíceis, mas sinto que me enriqueceram como pessoa. No fim, acabei sendo feliz. Me apaixonei e vivi os últimos anos com uma pessoa que me amava. Quanto ao sentido, em algum momento ainda cedo desisti de procurá-lo e fiz questão de obrigá-lo a me procurar. Por fim, me encontrei completamente livre de dúvidas existenciais, vendo na própria existência a resposta para tudo.
Entendo, entendo. E deste novo estágio, gosta?
Não desgosto, tenho que dizer! Minha compreensão parece ridiculamente mais aguçada e eu me divirto a observar os mais jovens com suas besteiras e desesperos. Lembram-me de mim, de certo modo.
Também me agrada, compadre. E agora que a vida passou fico feliz de poder rever os melhores momentos e perceber que não são poucos. Cada coisa minúscula que a nossa memória era incapaz de guardar...
Realmente, me incomodava a incapacidade de manter o conhecimento na cabeça. Agora sei que a única solução sempre foi deixá-lo fora da mesma.
E para amanhã, tem planos?
Amanhã? O que tem amanhã?
Ah! Morre e nem assim conserta o problema de memória? Dia de Finados! Como é que pode esquecer?
Ah sim, Finados. Para falar a verdade é um dia que nunca celebrei como vivo, não planejo celebrar como morto. Só mais um dia comum, de observação e reflexão. Já você imagino que tenha planos, certo? Senão nem perguntaria.
Sim, sim. Costumo passar com a família. Eles vão visitar o local onde já esteve meu corpo e onde agora está minha ossada e eu aproveito e me visito também. Só para encontrar, dar uma olhada em como estão.
Entendo. Fui cremado. Minhas cinzas jogadas ao vento. Mas de qualquer forma minha família já mal existia e mesmo se existisse dificilmente me visitaria. Não me lembro de eles terem visitado qualquer túmulo.
Bom, tenho que ir.
Sim, claro, não me deixe atrasá-lo.
Nos vemos por aí?
Ah, quem é morto sempre aparece! Qualquer hora nos encontramos.
Hahaha! Certamente.
Inclusive me lembre de te contar umas histórias.
Que tipo de histórias?
Ah, umas que vivi. De corpo e alma. Nessa situação tenho finalmente liberdade para me desfazer dos segredos.
Sim sim, claro. Nos vemos em breve.
Nos vemos, nos vemos.
(o vento levanta as folhas secas para depois devolvê-las ao chão)

sábado, 2 de novembro de 2013

Texto: De passagem

Levaria tudo o que é passageiro para dar uma volta comigo, mas,
por faltar espaço,
te deixo na calçada
esperando
plantada
de modo que ainda posso te avistar no meu retrovisor
(sozinha e embaçada).
Na verdade:
Levo muito pouco.
Um ou dois dons
uns CDs velhos e riscados
um Ray-Ban preto que esconda meus olhos tão fáceis de ler e
(quem sabe)
um ou outro amor que possa consumir na viagem.
Na verdade:
Deixo para trás tudo o que me faria falta
e só levo ao meu lado
(companheira cruel)
a saudade
(que nem passageira é).
Te vejo ao olhar para trás
me indecido de continuar.
Seus olhos invadem os meus.
Pedem carona.
Mas seus pés são mais práticos e te fazem virar a esquina.
Sigo.
Levaria tudo o que é passageiro para dar uma volta comigo, mas,
se tudo levasse,
já não precisaria voltar.
Então te deixo na calçada
esperando
cansada
e sei que na verdade não vai me esperar.
Olho pra trás
te vejo andando.
(Acho que só queria parar o carro
descer
olhar nos teus olhos
e decidir se meu coração voltava a bater
numa frequência alucinada
em sua direção)
Sigo em frente.
Só olho para trás.
Meu maior medo é me encontrar por aí
E me perder na falsa certeza de que posso ser completo e só ao
 mesmo tempo.
Levaria tudo o que é passageiro para dar uma volta comigo,
mas a vida é passageira
e,
se a gente não priorizar as coisas erradas
pode ser que elas passem sem a gente nem perceber.
No fim:
Não levo nada.
Vou vazio.
Só.
E incompleto.
Deixo atropelados no meio da rua os meus sonhos
e você pasma na calçada.
Tento não olhar para trás
acabo não olhando para frente.
Comigo só levo uns sabores.
Uns tons e umas cores.
Dons e amores.
E ao fim do dia
depois de tudo
(e antes de todo o resto)
sonho com um dia no qual não esteja só de passagem
e possa parar o carro,
descer
e desfrutar de tudo o que não é passageiro
com a certeza de nunca poder ser eterno
e a paradoxal percepção de que sou
(e serei)
para sempre
infinito.

Reflexão Breve e Pessimista: Só eu

Eu nasci sozinho, numa sala branca, cercado por gente de branco que insistia saber mais sobre mim do que eu. Ter me vivido mais do que eu. Ter me influenciado mais do que eu. Mas eu não nasci vazio e, por isso mesmo, nasci sozinho. 

E naquele momento, pelado e segurado de cabeça pra baixo por um desconhecido, foi que eu chorei pela primeira vez o choro de quem perde uma companhia. Eu perdi a mim mesmo. Daquele momento em diante nunca mais havia de me contentar com a minha própria companhia, sendo condenado a buscar em outras pessoas eternamente um espelho que me pudesse refletir e compreender. Me ensinaram (ou me lembraram) que eu era único e eu por mim mesmo concluí que viveria e morreria sozinho.Sozinho por saber que nunca seria completamente compreendido, que nunca seria completamente enxergado e aceito. Que partes de mim permaneceriam ocultas até a mim mesmo e que eu jamais poderia encontrar paz. E no meu leito de morte nenhuma das lágrimas haverá de chorar pelo meu eu inteiro, deixando minhas partes esquecidas condenadas a fantasmear por aí eternamente. Sozinhas e incompreendidas.
O preço de se saber único é a eterna solidão. A eterna sensação de não pertencer (aos lugares, às pessoas, às situações). O eterno medo de nunca mais se ver completo. A eterna certeza de que uma parte de si haverá de ser sempre dúvida. E a ânsia desesperada por alguém que nos responda

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Texto: Medroso

Quanto medo você tem?
Você tem medo do escuro? Tem medo do claro?
Medo de palhaços? Tem medo de ladrão? Medo de chuva? Medo de cachorro? Você tem medo do que, hein?
Tem medo de sair sozinho de noite? De sair sozinho de dia? De sair sozinho? De ficar com o vidro aberto no farol? Você tem medo de preto? Tem medo de branco? De rosa, de vermelho? De que cor você tem medo, hein? Acho que eu sei, você sabe?
E medo de guerra, você tem? Tem medo de perder parentes? Tem medo de andar de carro? Medo de ficar em lugares muito fechados? Você tem medo de ter medo demais? Me conta, do que você tem medo?
Você tem medo de fantasma? Tem medo de lobisomem, mula sem cabeça? E medo de saci, você tem também? Medo do bicho papão? Do homem do saco? Do rato que transmite doenças? De barata? De aranha?
Você tem medo de bala perdida? De passar fome? De passar frio? De passar sede? Mas e medo de ficar sozinho, você tem? Tem medo do lobo mau? De pesadelo? De história de terror?
Você tem medo de professor? Tem medo de prova? Que medo você tem?
Eu? Mas de que te importam os meus medos? Não, eu não tenho medo de nada! Eu não posso ter medo. Medo é coisa de medroso. Tenho cara de medroso?
Você tem medo de educação? Tem medo de aluno? Medo de rico, medo de iate? Tem medo de jogador de golfe? Medo de tenista? Não tem medo? Mas você tem medo do que? Tem medo de elefante? Girafa? Dromedário? Ah, dromedário assusta, vai! Só o nome já dá medo! Imagina só se cai na prova e você escreve 'domedrário'! Daí você tem medo, né?
E de você, quem tem medo? Tem medo de você quem você acha que tem que ter medo? Você assusta quem tem medo de você? Já foi assombração? Mas como assim ninguém tem medo de você? Bem você, que é tão grande e prepotente! Você que pisa em cima sem nem ver! Você que, por medo da morte, mata; que por medo do frio, congela; que por medo do escuro, apaga a luz! Você que por medo da educação, emburrece; que por medo da memória se esquece; que por meio do medo, amedronta!
Ah, eu teria medo de você! Teria medo dos seus muros, das suas câmeras, dos seus carros grandes e altos, de gente superior. Carro que passa por cima de gente sem dar nenhum tranco, você nem percebe! Eu tenho medo de você. Eu tenho sim. Muito medo.
Tenho medo das suas salas escuras onde você, por medo do escuro, nos tranca. Tenho medo da sua voz grave e séria, robótica, que sem mais nem menos condena. Medo das suas influências. Tenho medo das suas decisões tomadas sem consulta, sem pensamento, mas com medo. Sim, com muito medo. Porque você tem medo de mim, não tem? Tem medo de ver que meu medo me faz destemido. Porque o meu maior medo é ter medo de enfrentar meus medos. Medo de ver o medo se propagando e entrando tão fundo na gente, que a gente vá buscar um esconderijo, que nem você. Eu tenho medo de você. Boo.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Texto: Prematuro

O dia nasceu tempestade
De lágrimas quase oceano
Fica a eterna vontade
De que seja só um engano...

O dia morreu prematuro
Bem antes do sol se pôr
E agora ficamos no escuro
Só com saudades e dor

Oh, lindo e pequeno Matias
Matias da mãe e das tias
Dos choros e das alegrias
Que a gente não vai mais ver

Matias, Matias tão lindo
Matias, não vão te esquecer
Saiba que até desconhecido
Ficou a torcer por você

Matias, Matias criança
Matias agora é lembrança
Matias, Matias lembrança
Pra sempre ficará criança

Matias, Matias danado
Não há de ficar no passado
Estará para sempre do lado
De quem um dia lhe quis todo o bem

Matias, Matias querido
Matias dos olhos de mel
Matias, Matias pequeno
Mais uma estrelinha no céu

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Texto: História perdida

Pois os dias se passaram e não restou história a ser contada. Nada. Ou quase nada. Uns parágrafos perdidos, umas palavras engasgadas e só. O resto é história do não.
Mas que tenho eu contra a história do não? Não sei. Por isso conto agora a história que não tivemos. Não por opção. Não, pela não opção nunca tomada de não não correr riscos e aceitar, quem sabe, um não, ao invés de guardar vários.
Não deixei de te cumprimentar, olhar teus olhos lindos e aquele sorriso ao qual já antes não me esqueci de elogiar. Não esqueci, obviamente, do não disfarçado de talvez que já antes fizera questão de ouvir, mas não deixei que ele se transformasse, quem sabe, em um sim. Há quem pense que não se arriscou a ouvir um 'não', mas eu não posso deixar de pensar que não me arrisquei a ouvir um 'sim'. Não sei. Pode ser que seja mais complexo.
Não pensei duas vezes em me por a disposição e em me fazer educado. Não escondi a gentileza, não tive que me esforçar pelo sorriso idiota que mantive no rosto durante a maioria do tempo. Não sei, às vezes te ver me dá vontade de sorrir.
O céu era bonito, sim. As estrelas brilhavam pouco mais que na capital, mas brilhavam. Nem por isso utilizei-me do clima pré-pronto para, quem sabe, trocar umas ou duas palavras mais baixas, suaves e tranquilas numa solidão não buscada.
Não houve muito tempo no tempo que se seguiu, mas não posso culpar a falta de tempo pela meu excesso de medo. Não, não medo. Definitivamente não é medo. É a constante espera do 'não' que me assombra já há algum tempo. Quase não espero um 'sim'.
Mas não me sentei do lado de outra quando tempo me restou e não deixei de tentar, com uma infantilidade imbecil, fazer obstáculo ao silêncio levemente constrangedor inerente às conversas entre pessoas que sabem muito bem o que é pensado delas. Não foi difícil. Não sei.
Sei que não lhe roubei um beijo, que não lhe disse umas palavras que deveria ter dito e que não me dei a chance de não estar sozinho.
Não lhe falei que é linda mesmo suja de tinta e suor, não disse que meu olhar tem sede do seu e, mesmo sendo assim, não deixei de desviar rapidamente os olhos em cada vez que estes, nem tanto por acaso, se cruzavam.
Não me importei em assistir o pôr-do-sol na sua companhia, por mais bonito que este fosse e não por falta de vontade não lhe disse nada que não pudesse ser dito por qualquer outro. Não me destaquei. Nem tentei.
Mas não fique triste, pelo menos rendeu uma belíssima não-história, daquelas que não emociona sequer quem emocionalmente instável já é.
Não toco mais no assunto, bem ou mal, não houve nada. E a minha certeza de que não virá me perguntar se é sua e minha esta não-história aqui registrada me deixa parte tranquilo parte desesperançoso.
Pra não dizer que não me despedi direito, mando-lhe agora um beijo e encerro esta história perdida sem mais delongas.
Ciao, bella. Até mais.

domingo, 21 de julho de 2013

Texto: YOLO

Talvez até quisesse amar, ser amado, chorar e sorrir, seguir os padrões antigos de felicidade de cinema. Tinha porém um problema: só iria viver uma vez!
Isso, só uma vez! E nem era pra sempre! Olhe só! Sendo assim, abdicava completamente ao comprometimento e, quase que por consequência, ao amor. Isso. Para que gastar tempo com amor se não se pode viver duas vezes? Não! O amor não havia de o merecer! Talvez nem o desejasse de qualquer maneira, nunca viria a saber.
E assim seguiu, vivendo cada dia como se não tivesse amanhã. Logo, deixou de ver o ponto de se haver presente, uma vez que já não tinha futuro. Olhava para seus conhecidos (amizade? para quê? a vida acaba e de nada serviu!) e se perguntava o porquê de trabalhar, de estudar, de namorar, de ter uma família. Só lhe importava o agora, a única coisa da qual podia ter certeza absoluta! Bem ou mal, de um dia para o outro poderia acontecer um desastre natural, poderia haver uma guerra, uma epidemia e então todo o trabalho duro já de nada teria servido.
Muito pelo contrário. Teria que viver o resto da vida lembrando que tudo tivera, que tudo conquistara. Teria que tentar esquecer as pessoas que perdera, se alguém perdesse.
Mas a vida é hilariante e também aqueles que não esperam ou desejam recebem cada dia um amanhã. E este amanhã veio. Veio cheio de tarefas, de obrigações sociais, de necessidades novas e mais desafiadoras. E estas foram novamente rechaçadas e arremessadas contra um futuro que, inevitavelmente, terminaria num corpo apodrecido.
E vieram outros amanhãs, quem diria. Mas quando o amanhã chegava, surpreendentemente, ele já era hoje! E o dia de hoje só pode ser louvado e aproveitado. Bem ou mal, nunca se sabe se se viverá um novo amanhã.
(Não, meu caro leitor, até hoje nunca ouvi falar de alguém que tenha vivido um amanhã. Num geral as pessoas tendem a viver os hojes, deixando os amanhãs sempre para depois, data tão próxima que nunca chega.)
Um certo dia os amanhãs acabaram. Nem coração continuou a bater nem pulmão continuou realizar trocas gasosas nem. Nada. E, pela primeira vez, curiosamente, aquele hoje virou ontem.
Ontem é um dia curioso. Ele fica um dia antes de hoje, mas, passado um dia, ele fica mais distante.
E tal ontem foi envelhecendo, ficando pra trás na sua sina imbecil de sempre correr atrás do hoje sem nunca o alcançar.
(Curiosamente, também o hoje o ontem persegue, por vezes, e, condenado a nunca parar, só faz distanciar-se.)
E tal ontem foi esquecido.
Esquecidos foram os feitos históricos, as cervejas bebidas, as festas frequentadas, as garotas beijadas. Esquecidos foram os sorrisos nem sempre reais, as piadas nem sempre engraçadas, as conversas quase sempre dispensáveis.
Esquecidos também foram os arrependimentos, é bem verdade. Bem ou mal as pessoas sem amanhã tendem a eliminar também seus ontens.
Depois de completamente esquecido, sem ninguém a lhe lembrar o nome, ou comentar os feitos inconsequentes e inúteis, sem ninguém a lhe querer de volta, pode-se dizer que o seu ontem já nem ontem era.
O ontem, bem ou mal, é fundamental para a chegada do dia de hoje, sendo uma etapa absolutamente necessária para este. Sendo assim, quando o ontem já nenhuma relevância tem para o hoje, ele deixa também de ser ontem para se tornar um nada.
Esse tal nada, porém, tem nome! Chamo-o vida.
Perfeitamente justificável este nome, uma vez que essa vida foi formada pelos mesmos ontens que já formavam o nada que não merece ser chamado de passado.
O morto se encontra agora aqui do meu lado. Não lhes havia dito antes, não havia necessidade. Parece incrédulo. Não sabe bem o que sou.
"É Deus?" diz. Talvez duas palavras sejam o máximo que consegue colocar numa frase. Deus é uma palavra longa, quatro letras.
Respondo que não. Só o escrevi! Mais nada. Por mim foi criado, seu mundo se assemelha ao meu.
Parece indignado. Então não passou de personagem o tempo inteiro? Escrito ainda por cima, que vergonha! E quem o iria ler hoje em dia?
Olha pra mim com um orgulho desafiador.
"Só se vive uma vez!", diz com uma pompa idiota de quem fala uma verdade universal da qual é o único conhecedor, que lhe justifique os erros e falhas. Que lhe justifique a própria morte. Na verdade tenho um pouco de pena.
Confirmo sua afirmação. "É", digo. Só. Faço um olhar de condescendência. Bem ou mal, está morto!
Mal sabe ele que a verdade é mais densa. Se soubesse talvez fosse diferente. Mas não está de todo errado. Não se pode viver duas vezes.
Só que nem sempre se vive uma vez inteira...

terça-feira, 25 de junho de 2013

Texto: Poema do eco

(Um nome que me ecoa na cabeça)

BOOM!
O mundo acabou.
Não vejo mais nada,
não lembro quem sou.
(não quero ser nada,
não sei nem se vou)

Agora só há o silêncio (êncio, êncio)
Agora só há a memória (ória, ória)
Agora só há a vontade de inventar uma última estória.

Mas minha ideia fugiu, (Giu! giu).
Buscou outras terras, partiu.
Perdeu-se no mesmo momento em que você pros meus olhos sorriu.

Meu mundo acabou,
que grande tirada!
(eis minha grande jogada!)

Não, senhora, não chora.
Sorri que o mundo melhora.
Já é hora de ir embora
(se preferir fico aqui fora, não cora)
A aurora não demora (nem hora)
Vem aqui. Me namora.
Ora senhora, e agora?

(E ela me deixa no frio,
tão vil! (Giu! giu)
Dispara meu coração
a mil(Giu! giu))

Olha pra mim, sim (sim)
Sorria assim (sim, sim)
E me diz que sim (sim! sim!)
Que se encerra o fim.

Meu mundo acabou (renasceu)
E eu finalmente era eu (eu, eu)
Até que o seu olhar me fugiu, Giu (giu)
E de novo meu mundo ruiu.

(Giu, Giu, G   i   u, G       i         u, G       i, G)

terça-feira, 4 de junho de 2013

Um começo: As primeiras impressões

Uma, duas, três vezes se cruzaram até que se percebessem por completo.
Podiam já ter se conhecido da primeira. Fora num parque, num dia de sol. Ambos sozinhos. Andando, olhando, fotografando. Mas não se viram.
Nem ele esbarrou nela derrubando sua bolsa nem ela lhe foi pedir qualquer informação idiota. A vista dele até roçou o ombro dela e os inquisitivos olhos dela por muito pouco não se fixaram nele.
Na segunda vez ele a viu. Ela o viu. Mas não se viram. Digo, viram-se, mas seus olhos permaneceram desencontrados. Nada incomum.
"É bonita", pensou ele.
"Diferente", pensou ela.
Se este 'diferente' quis dizer 'parece um filhote de cruz credo' ou somente 'diferente, que chama a atenção' fica a seu critério. Não entendo a mente feminina nem sequer quando a crio.
Cruzaram-se. Foi só. Como era de costume ele ainda se virou, viu-a andar.
"Afinal de contas não nasci cego..."
Viu também seus cabelos escuros caindo bastante abaixo dos ombros. Viu também seu jeito de andar. Decidido como quem não sabe bem onde vai, mas vai mesmo assim. Não teve a chance de rever seu rosto. Num relance rápido havia lhe parecido bonito, agradável. Imaginou-o sorrindo (nos dois possíveis sentidos). Virou-se. Seguiu.
Da terceira vez uma mudança de sorte propiciou um encontro mais longo.
Coisa estranha essa sorte. Imprevisível. Tem vezes que está ótima e a gente só percebe quando acaba. Tem vezes que está péssima e quando muda a gente percebe que nem estava tão ruim. Tem vezes que a gente acha que está boa e de repente percebe que estava péssima. E tem vezes que parece que está péssima e a gente descobre que estava melhor do que nunca. Tem vezes.
Dessa vez a sorte mudou pros dois lados ao mesmo tempo. Ou se disfarçou de azar e continuou sorte. Não sei bem ao certo. Não sou de entender o mundo.
Só sei que não fosse a falha do despertador dele ele não estaria na rua naquele horário. Não estaria andando mais rápido. Não estaria distraído com as mil coisas que tinha que ter prontas e não tinha.
E também se ela tivesse conseguido se fazer ouvida pelo cidadão extremamente bem nutrido que não lhe permitira descer do ônibus no ponto certo não estaria naquele exato ponto da rua. Não estaria andando para aquele lado. Não estaria olhando para baixo para ver se tinha deixado cair alguma coisa.
No meio do caminho, chocaram-se. Mas não uma esbarrada qualquer, daquelas que derruba o que se segura nas mãos, se sorri envergonhado e se continua o caminho. Não. Uma esbarrada de verdade, testa com testa, daquela que te deixa tonto por uns quinze minutos e que só permite uma única combinação de palavras.
-FILHO DA PUTA! - disseram os dois numa sincronia idiota.
Da boca dela ainda saiu um:
-Olha por onde anda, porra!
Ele já se desculpava.
Ao lado um senhor barbudo, morador de rua, não fazia o menor esforço para conter o riso
-'Num' 'vo' nem pedi' trocado!
Ele (não, não o morador de rua) olhou pra ela, ela olhou pra ele. Ela com a mão na cabeça, visivelmente irritada. Ele solta uma risada discreta. Ela sorri.
-Desculpa? - disse ele, se abaixando para pegar a bolsa dela do chão.
-Ah, acontece. - disse ela, ainda sorrindo. Pegou a bolsa das mãos dele. Fica parada. Espera alguma coisa?
-Tô correndo, já to bem atrasado. Desculpa mesmo, viu?
-Vai lá, vai lá.
Mas é ela quem sai andando enquanto ele fica parado no mesmo lugar.
"Um minuto a mais, um minuto a menos, já nem faz diferença mais".
Ele se vira.
-Ei!
Ela se vira. Ele sorri.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Texto: Ainda não

Nosso amor é diferente
Amo-te, odeio-te, simultaneamente
E por incrível que pareça, paradoxalmente
Meu coração sabe muito bem o que sente

Olha, meu amor, nosso amor é complicado
Tem quem olhe de longe e jure que está errado
Mas eu tenho a certeza de não estar equivocado
Quando fecho os meus olhos e te vejo ao meu lado

Sabe, meu amor, com você eu sou feliz
Muda toda a minha vida, o que faço, farei, já fiz
Já não há a menor dúvida, foi você que eu sempre quis
Pois antes de você, lembro de uma vida gris

Acredite, amor, nosso amor é moderno
E mesmo acabado, há de ser eterno
Pois eu, sem você, vivo sempre inverno
E sequer tenho certeza de que meu mundo governo

Desculpe, amor, nosso amor acabou
E sem você já nem sei quem eu sou
Sigo perdido, sem saber onde vou
Pensando na vida que você me privou

Não te esqueci ainda
Pois que o meu amor não finda
Não te esqueci ainda,
Minha garota linda

Ainda não.
Ainda não.

sábado, 20 de abril de 2013

Texto: Quebra-cabeça (Dois ou um)

Ei. Oi. Posso te contar um segredo? Saudades. Já? Sempre. Passa. Nunca. Por quê? Estupidez. Mentira. Não só. Também. Relaxa. Confia. Senta. Fala. Chora. Ouve. Sente. Sente. Sente. Sente. Sabe, nada... Fala. Nada. Fala. Por quê? Só fala! Falo. Sabe, acabou. Eu sei. Eu também. Você é eu. Eu também. Não, sério. Sério? Sério. Somos a mesma pessoa. Eu. Você. Nós. Um e um. Um.
Um em dois um? Um. Sempre? Sempre. Mesmo? Mesmo. Sabe, já fui um antes. Sei. Doeu. Eu sei. Sabe. Sei. Sabemos. Sei. Um e um um. Sempre. Oi. Ei. Sabe? Sei. Como? Sou você. Somos um. Sempre. Para sempre. Como sempre. Pra sempre. Pra sempre. E agora? Continua. Tudo bem. Para sempre. E a distância? Para sempre. E o medo? Para sempre. E o choro? Pára agora! Acabou. Por quê? É mesmo. Você. Não. Foda-se. Bosta. Merda. Porra. Filha da puta. Pára. Por quê? Por mim. Paro. Perdão. Mas sempre. Somos um. Um e um um. Dois em um. Um. Sou um. Sou um. Sou dois em um e um eu um. Sabe? Sei. Sempre. Nóis. Cara. Só não. Tá. Não to entendendo. Então monta. Tá. Eu tento. Separa as peças de ponta. Pára. Desculpa. PÁRA! Por quê? Tá me machucando. Eu sei. Você já sabia? Sempre. Como? Somos um. Mesmo. É. Sempre. Então... Aguenta? Aguento. Desiste? Jamais. Certeza? Já não. Ei. Oi. Um e um. Dois. Não. Quatro. Não. Três. Duas metades. Um inteiro. Não. Quatro. Ou três? Não sei. Ei. Oi. Sabe? Não. Então deixa. Cansei.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Texto: Conversa Vazia

Oi.
Oi.
Tudo bem?
Tudo.
Você sumiu...
Sumi.
Você falou que não ia.
Falei.
Você falou que éramos irmãos.
Fomos.
Você falou que me amava.
Amo.
Você falou que sentiria a minha falta.
Sinto.
Você falou que chorava.
Chorei.
E?
E o quê?
E então?
Então foi.
Mas passou?
Não.
Você me odeia?
Um pouco.
E por quê?
Por ter precisado de você.
Mas eu não estive lá?
De certo modo.
Eu tentei...
Por um tempo.
Você é difícil.
Impossível.
Tenho tanto pra te contar.
(silêncio)
E você, como está?
Bem, já falei.
Novidades?
Não, só o de sempre.
Já nem sei o que é...
Nem eu.
Bom, tenho que ir.
É bom.
Por quê?
Não, digo, ter o que fazer, para onde ir.
Ah.
(nada)
A gente se vê?
Duvido um pouco.
Vamos marcar alguma coisa!
Vamos, vamos.
Me liga depois?
Sim.
(offline)
Acho que eu não tenho mais o seu número. Não espere a ligação.
(silêncio óbvio)
Foi erro meu. Até mais.

computadores desligados, laços cortados.

domingo, 24 de março de 2013

Texto: Liberdade - Uma história infantil

Era uma vez um homem. Um homem alto. Ele usava chapéu.
Chapéu e um terno preto. Com uma gravata preta. Com sapatos pretos. Meias pretas. Acho que a única coisa branca no homem era a camisa. Uma camisa branca. O homem alto de chapéu usava uma camisa branca.
Mesmo a camisa branca tinha listras pretas, mas em sua maioria, era branca.
O homem alto de chapéu, terno preto, gravata preta, sapatos pretos, meias pretas e uma camisa branca com listras pretas mas que era mais branca do que preta trabalhava numa firma de advogados onde todos usavam chapéus, ternos pretos, gravatas pretas, sapatos pretos, meias pretas e camisas brancas, às vezes com listras pretas e às vezes sem listras. (Ufa! Um ponto final!)
Ele trabalhava bastante e sempre chegava em casa bem tarde. Ele sempre chegava em casa cansado. Comia a comida fria do jantar que já fora tirado, dava um beijo nos dois filhos já adormecidos e na esposa, que dificilmente estava acordada, e dormia. De manhã ele acordava os filhos e levava eles na escola. Depois ia trabalhar.
Uma vez, num dos poucos fins de semana que o homem de preto tirou de folga, ele levou os filhos em um restaurante. O filho mais velho estava aprendendo a ler e ficava perguntando tudo o que lia.
Ele leu 'Rua da Liberdade'. Ficou imaginando uma mulher que se chamasse Liberdade e que fosse dona da rua. Ele imaginou uma velhinha gorda e com cara de quem sabe cozinhar muito bem.
Um pouco mais pra frente ele leu 'Praça da Liberdade'. Ele achou que ia ser muito estranho se a velhinha que cozinha bem fosse dona da rua e da praça. Como é que alguém pode ser dono de uma rua e de uma praça?!
Então ele pensou que Liberdade devia ser alguma firma como a do pai dele, que tinha bastante dinheiro e podia comprar ruas e praças e dar nomes pra elas.
Um pouco depois ele viu uma placa que dizia só 'Liberdade' e que ficava na frente de uma construção engraçada, que tinha uma escada no chão que parecia que descia pra sempre. Daí ele não entendeu mais nada.
-Pai, o que é liberdade?
O homem de preto, que nesse dia nem estava de preto, pensou um pouco e respondeu com as suas palavras difíceis de advogado:
-Liberdade é o estado das pessoas livres.
-Ah! -respondeu o filho mais velho. Depois pensando mais um pouco falou -Mãe, o que é liberdade?
-Filho, liberdade é quando você não tem que obedecer nenhuma regra e pode fazer tudo o que você quer!
O filho mais velho pensou mais um pouco. Liberdade. Palavra bonita.
Mas por que será que as pessoas estavam entrando em baixo da terra pra ir pra Liberdade?
-Mãe, pra 'estar na' liberdade você tem que estar sozinho?
A mãe fez uma cara confusa e pensou um pouco antes de responder:
-Sozinho sozinho não precisa estar, pode ter um pouco de gente com você. Mas se tem muita gente você já acaba tendo que seguir alguma regra, entendeu?
O filho não respondeu. Ele pensou nos seus amigos, nos seus pais, nos seus avós, nos seus primos, nos seus professores e no seu irmãozinho, que às vezes era muito chato, mas que ele brincava bastante.
-Deve ser bem chato 'estar na' liberdade.
A mãe franziu o cenho com uma cara pensativa, pensou em dizer alguma coisa, desistiu. Pensou de novo e desistiu de novo. Por fim levantou os ombros. 'Cada coisa que as crianças sabem esses dias', pensou ela.
O carro parou na frente do restaurante. A família desceu enquanto o pai ia estacionar na esquina.
Liberdade. Palavra bonita.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Texto: Hänsel und Gretchen

Era uma vez João, era uma vez Maria. João amava Maria, Maria não amava João, o passarinho comeu as migalhas e ambos morreram de fome. Não, ficou ruim. Deixe-me tentar de novo.

João. João era um passarinho. Maria era um pão que fora esmigalhado por dois pequenos vagabundos. João comeu Maria e só então Maria se sentiu completa. Não, duplo sentido desnecessário, história sem graça.

Maria. Maria era feliz em sua vida, casada, com filhos. João era um vagabundo que vivia embaixo da ponte. Uma vez Maria jogou uma migalha de pão para João. Não vejo uma continuação para essa história. Próxima.

João era João. Maria era Maria. João não conhecia Maria que não conhecia João (que não conhecia Maria, que não conhecia João).
João era João e João era um filha da puta. João fazia poesia para seduzir tantas outras marias. João tinha estilo.
Maria era Maria e Maria era de uma beleza oscilante e duvidosa.
Um dia João conheceu Maria e viu em seus olhos uma trilha de migalhas de pão.
Um dia Maria conheceu João e viu em seus olhos uma tristeza escondida e um coração partido.
João passou rápido por Maria, não lhe perguntou o nome, não lhe disse nada.
Maria olhou para trás.
No dia seguinte João morrera de overdose e Maria foi encontrada boiando no rio.
Não, muito triste.

João amava Maria que amava João. Eram plenamente felizes, só havia um obstáculo.
João era um pássaro e Maria uma gaiola.
Um certo dia a bruxa má decidiu libertar João de sua Maria. Como João não saísse, montou esta bruxa uma trilha de migalhas de pão. João se perdeu na floresta, desaprendeu a cantar e num certo dia caiu de uma árvore, como se já não voasse. Maria foi derretida e virou um lindo colar. Ainda não, próxima.

Maria fora feita para João e também João fora feito para Maria. Eram a mesma pessoa em corpos diferentes. Tinham os mesmos interesses, o mesmo nível de cultura, compartilhavam dos mesmos valores morais e das mesmas manias esquisitas. João amaria Maria e Maria amaria João. Maria morava na China e não se chamava Maria. João morava no Panamá e devia se chamar Juan. Nunca se conheceram. Quanto azar.
Mais uma, mais uma, por que não?

Once upon a time, in a land far, far away, there was a young man named John. He was not happy and had never been happy. In fact, he didn't even know what happinness meant.
However, neither was he sad. He existed and this existence was poor in meaning and in reason. One could say he filled the space, so that the existence of others would not be too empty.
Mary was the daughter of a King. She was, however, not a legitimate daughter. Mary was the daughter of a King without the perks of being the daughter of a King and without ever having her name remembered in history lessons.
When John first saw Mary, he was afraid.
When again he saw mary, he hated her.
When for a last time John saw Mary,he loved her and used that love to stop an arrow from going into her heart for an unknown reason. John died happilly. Mary lived and was forgotten.
Outra? Qualidade ou quantidade, pouco importa.

Kommt, Kinder, ich erzähle euch jetzt die Geschichte von Hänsel und Gretchen!
'Aber unsere Eltern haben uns diese Geschichte schon erzählt, Frau Eckemeier!'
Nein, Kinder, diese Geschichte die ich euch gleich erzähle, ist die Geschichte andere Hänseln und Gretchen!
'Ach so, Frau Eckemeier! Erzähle uns, bitte, bitte!'
Gretchen war eine Hexe und Hänsel war ein Vögel.
Gretchen liebte Hänsel und ihre Liebe hat ihm zur Mensch gemacht, so dass er sie auch lieben konnte.
('Frau Eckemeier, warum machst du so viele Fehler wann du Deutsch sprichst?' Halt deine Klappe Anne! Ich versuche eine Geschichte zu erzählen!)
Hänsel wollte aber kein Mensch sein. Und auch die Hexe wollte kein Vögel sein. Die Hexe frass Hänsel sodass er ein Teil sie sein wurde, obwohl er das nicht wollte. Ende.
Próxima, próxima.

Já era quase meio dia quando João conheceu Maria. E ela sorria, ele via! E a medida que acontecia de ela entrar no seu dia-a-dia, João logo percebia que também ele sorria.
Não havia mais dúvida, um novo amor surgia.
Pois João num certo dia de excesso de euforia, quis contar a Maria tudo o que sentia. Maria mal sabia que este amor existia, que por ela ele sorria e que ele a queria.
Pois Maria neste dia, depois de lavar as mãos na pia (?) procurou o seu João e disse que também sentia um amor que, todavia, não existia.
Ah! A alegria de João crescia, expandia! João finalmente vivia!
Por uma noite e um dia, foram João e Maria, depois Maria revelou, que na verdade mentia.
João já não sorria. Maria já se ia.
Vadia.
Mais uma, mais uma! Vamos aproveitar o entusiasmo!

Maria conheceu João no necrotério. Ela morrera em um acidente de carro e ele de assassinato.
'Você imaginava dar pra se comunicar depois de morto?' soltou João, tentando iniciar um diálogo.
Maria sorriu, respondeu que não e eles ficaram lá conversando.
A medida que os corpos esfriavam, a conversa esquentava e João logo contou em detalhes como sua ex-mulher o matara com sete facadas no peito, por ter sido ele o único capaz de fazê-la se sentir bem. Maria contou como resolvera acelerar mais do que normalmente depois de ser demitida e atravessara um farol vermelho na frente de um caminhão.
Já planejavam uma eternidade juntos, João e Maria, quando a família de João optou por cremá-lo. Maria apodrece triste.

Chega de brincadeiras, vamos escrever a sério.

Era uma noite sem estrelas, sem lua e sem vida. Tais quais zumbis, adolescentes e jovens adultos insistiam e balançar seus corpos flácidos em cada boate da Cidade. As diferentes músicas enchem o ar de um barulho arritmado, uma sinfonia de sons estridentes e dissonantes. Em algum canto da Cidade, está João.
João é João, somente. Não se pode dizer que vive, balança, como os outros zumbis, seu corpo no ritmo das músicas e dos sons que o cercam. Mas João já foi diferente. Foi morto num assassinato cruel quando pela primeira vez lhe invadiu o nada.
Maria é triste. Seus olhos tristes espelham essa tristeza patética de se saber abaixo das expectativas e do potencial.
O corpo de João se aproxima do de Maria. Suas almas se tocam. Nos olhos de João, Maria vê uma trilha de migalhas.
Nos olhos de Maria, João vê um pássaro faminto.
João se aproxima de Maria.
'Eu sei.'
'Eu também.'
Voltam a se afastar. Procuram-se mutuamente com o olhar, mas a música que guia seus corpos não permitem que se aproximem. 'Eu sei', 'Eu também'.
João e Maria não querem voltar pela trilha de migalhas que, aos poucos, vai sendo devorada, mas também não querem se aventurar a chegar na casa da bruxa. A correnteza de sons não os deixa decidir, suas vidas pré-traçadas os obriga a saber que sabem, mas não lhes permite saber o quê.
Tantos Joões (Joãos?), tantas Marias, tantas migalhas e pássaros, tantas melodias, notas, tons e sons. Tantas opções e tantos desperdícios.
João avista a casa da bruxa. 'Eu só queria ter ido atrás de Maria'.
Maria avista a casa da bruxa. 'Eu só queria rever João'.
Mas a correnteza é forte e falta vontade aos dois.
Nem João virou pássaro, nem Maria o enfeitiçou.
Eis a história de João e Maria.