sexta-feira, 13 de julho de 2012

Texto: Abstrato

Começou a cair o mundo e o meu mundo já caiu faz tempo. E antes que você descubra, vou deixar claro que eu que invento.
E eu não quero mais sair de casa, essa chuva já está bem forte. Chuva de águas passadas que voltam por debaixo da ponte, a mover todos os moinhos e a invadir meu eu, desmunido de armaduras e muralhas depois que meu mundo caiu.
Essa gente é tão triste, existe e não sabe mais o que fazer. Mas finge que sabe tão bem que algum dia pensará saber. A verdade é só questão de opinião, de educação e de uma propina amiga que nunca atrapalha aos bem munidos.
Mas a minha munição acaba e atiro contra o vento. As suas muralhas não caem e eu não sei o que há por dentro. Pois num último suspiro, já te digo o que aconteceu. Estão todos enganados, e aquele não era eu.
A vida passou de manhã, mandou lembranças, não quis te acordar. E estas lembranças felizes te lembram de tudo o que não quer lembrar. Te lembram que a vida existe e que é você quem não quer viver. Te dizem que te enganaram, que não é isso que quer pra você.
A viva chegou de Paris, vai te abraçar, perguntar como está. E você vai dizer que está bem, deixando a sua alma a suspirar.
Ah, nem os ventos quentes trarão o que passa de volta aqui. O que passa passa por cima, te atropelando e fazendo doer. Doer as feridas abertas que expôs ao sol e não quis curar. Bem sabe que nunca gostou muito de médicos, mas a sua alma putrefata dói e já não há o que fazer.
E pode dizer que foi sorte o meu mundo cair antes disso. Mas eu sofro também quase em dobro pelo que ainda vai te acontecer. Eu te estico uma mão (desespero!) e você se recusa a aceitar. O seu orgulho é tão grande que eu não poderia aguentar.
Segunda estava sol, amanhã já não posso saber. E o amanhã já é hoje, aconteça o que acontecer.
Já é parte do saber comum, estou de férias, não posso aprender. Então te ensino agora que falta uma hora pra eu te esquecer. Porque eu invento as minhas mentiras e a verdade eu finjo não ver, mas a verdade é que bem no fundo, eu já não sei se gostei de você.
Concordamos, o louco sou eu, mas a minha loucura é sã. Pois sim, é tudo pensado, tem um fluxo e eu não quero seguir. Este fluxo me leva pro ralo e ninguém sabe o que tem ali. E você diz ser contra o fluxo, mas o fluxo te envolve inteira. Não pode se destacar enquanto desce a ladeira.
Preciso fazer minha mala, agora eu vou viajar. Mando salves aos que ficam parados no mesmo lugar.
Pode ser que espere pra sempre até o seu príncipe chegar. Pode ser que aposte num sapo que nunca vai te salvar. A verdade é que eu passei e você não quis me aceitar. Perguntou-me aonde eu ia e falei que pra outro lugar.
Eu também quero saber com quem (!), mas mesmo assim tudo bem. O maior sonho da sua vida foi por acaso morrer sem ninguém?
Pode explodir, não apoio e também não fico pra ver. Mas já sabemos que é você quem ganha em qualquer discussão que venhamos a ter.
Tudo passa? Passa, mas você não sabe o que quer dizer. Quer dizer que o que queremos temos que mostrar querer. Temos que manter conosco o cobertor a nos aquecer, senão morreremos de frio e de não ter o que fazer.
Vai ao restaurante. A escolha é sua, mas nada no cardápio te agrada. Pois é o primeiro passo pra deixar dessa vida cansada. Mas prefere escolher o óbvio, o que todo mundo pediu. Já as suas experiências, o tempo levou, ninguém viu.
Se o dia nasceu, a noite ruiu, as minhas muralhas eu reconstruí. E o que você vê é um espelho, das eternas ruínas de ti.
Água mole em pedra dura tanto bate até que cansa. Você ainda me deve aquela última dança.
E eu peço que você me ataque, não é o que quer fazer? E não sabe que me atacando, está atacando você?
Ah, mas a noite começa e você já quer ir dormir. Pelo jeito já está cansada, cansada de não existir. Mas ninguém sentirá sua falta, virá outra protagonista. E ao invés de lamentos, você terá que ouvir o som das palmas de dentro de sua cova rasa.
Ah, mas é só mais uma pintura abstrata, só que dessa vez é real. E se você não entende deve ser porque é normal.
Normal. Comum. Ordinária. Talvez se destaque a cor dos olhos. Não deve ser única também.
E eu sou louco, esqueceu? Mas sou eu que governo o meu mundo, e já não tem mais lugar pra você. Me atacaram, mas aquele não era eu. Me confortaram, mas aquele não era eu. Me acolheram, mas aquele não era eu. Sinto muito. Só não tanto quanto você.
A transparência de um vidro blindado às vezes deixa transparecer a falsa fragilidade que parece nos envolver. Já com você é o contrário, suas paredes são de gesso. Mas já estão desmoronando e estou vendo que não te conheço.
Passe as férias no mar. Eu passo nas abstrações. E quem encontrar sentido entre pro grupo das aberrações.
Sinto falta de sentir falta. Diga o que quiser.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Texto: Registro de atendimento

O paciente se apresentou ao nosso pronto socorro nesta tarde de quarta feira reclamando de constantes dores no peito, falta de ar, dificuldade para dormir e para pensar. Após diversos exames de rotina, que não constataram nenhum mal identificável, pudemos observar a origem do problema: a ausência de um órgão vital, o coração.
Não há necessidade alguma de esclarecer que todos ficamos extremamente encantados e desorientados com tal fato, nunca antes observado em toda a história da medicina moderna.
Sem poder fazer qualquer tratamento imediato, optamos por questionar ao próprio paciente, a origem de tal mal.
"Falta-me há dois meses. Foi-me roubado, quebrado e agora se encontra perdido em algum lugar desconhecido, escondido entre as ruínas da vida que não tive".
A maior dúvida entre todas as gigantes dúvidas que se apresentaram após o diagnóstico, foi como tal paciente permanecia vivo. Diz ele que também não sabia, mas que imaginava ser por não ter motivos para morrer. Registramos aqui suas exatas palavras após tal pergunta: "Pensei nisso também. Vai ver que já estou morto e não percebo. Acho que ainda respiro, ainda penso e ainda 'sobrevivo' (notamos uma certa ênfase no 'sobre') por não ter motivos para cair morto. Não, não morro. Não morro porque meu coração despedaçado e perdido ainda bate em algum canto desta Terra, no chão no qual foi jogado por aquelas mãos tão lindas que eu tive o prazer de segurar uma vez".
Tratando-se de um "furto", ou até mesmo de um sequestro de coração, decidimos encaminhar o caso à polícia. O paciente antes de ser interrogado pelos policiais, ainda disse em alto e bom som, mas sem endereçar tais palavras à ninguém "Se é para morrer, prefiro morrer nos teus braços".
A polícia, talvez mais desorientada do que nós naquele primeiro momento, nos devolveu o paciente dizendo tratar-se de um assunto meramente médico. Tal paciente havia entregado de boa vontade seu coração e não poderia, portanto, reavê-lo a força. Além disso, somente o próprio paciente poderia encontrar este coração, não tendo a polícia nada que ver com o assunto.
Levemente indignado com o fato de o paciente saber a localização de tal coração, até onde sabíamos necessário a vida, perguntei-lhe o porquê de ele não poder reavê-lo. Diz-me o paciente que já não lhe pertence tal coração e que, dentro de si, ainda tem esperanças de que ele esteja bem guardado.
Baseado no que pudemos observar em relação a tal paciente, acreditamos que ainda lhe restem anos de sobrevida, na qual poderá ainda ter suas ilusões de felicidade e, quem sabe, até possa ter umas felicidades reais. Sua única esperança de vida (e não sobrevida), porém, é que seu coração lhe seja devolvido ou lembrado.
Não podendo deixar por mais tempo a cavidade torácica vazia, optamos por colocar no lugar onde estaria o coração uma pedra, que ocupe o espaço e que evite maiores danos. Contamos com a frieza de tal pedra para evitar que tal paciente novamente se machuque, mas não acredito que isto possa ajudar a curá-lo. Além disso existem grandes possibilidades de esta pedra machucar outros corações com os quais o paciente faça contato a partir de agora.
Terminamos este registro de atendimento com mais uma declaração marcante deste paciente que acreditamos ser extremamente relevante ao seu caso: "Sabe doutor, eu fui enfeitiçado. Aqueles olhos verdes me fizeram perceber que eu queria ser muito feliz. No fim acabei-me preso no labirinto daqueles olhos. Creio que não fosse isso, não teria aprendido o que é viver. Viver é acordar mais cedo do que você precisa só pra responder uma mensagem de 'bom dia'. É chamar o que não é seu de seu. É buscar modos de elogiar alguém a cada frase, a cada palavra. Viver é a incerteza misturada com a certeza e com a não necessidade de saber o que é certo. Viver é uma droga doutor. Estou há dois meses na abstinência, mas ainda fico com aquele gosto de quero mais. Mas algum dia eu ainda vou ver aquele pôr-do-sol e vou me lembrar que foi muito bom. E ainda vou lembrar que eu estraguei tudo, que fiz tudo errado, mas que possivelmente se fizesse certo também não conseguiria acerto maior. Só fico pra sempre com esta dúvida."
O ser humano é um ser indecifrável, que pode ao mesmo tempo fazer um ato heroico e morrer de medo. Hoje, a grande maioria é movida pelo medo. O medo de encontrar em tantos outros peitos uma pedra a bater, o medo de perder os motivos e o estranho medo de tentar reavê-los (que deriva do medo de ferir alguém mais ainda). O medo de que nos falte e o medo de que nos sobre. E acima de todos estes medos está o medo de amar, responsável pelas tantas pedras que hoje ocupam a cavidade torácica de inúmeros homens e mulheres.
Tenho medo.
O que será de mim?