terça-feira, 10 de julho de 2012

Texto: Registro de atendimento

O paciente se apresentou ao nosso pronto socorro nesta tarde de quarta feira reclamando de constantes dores no peito, falta de ar, dificuldade para dormir e para pensar. Após diversos exames de rotina, que não constataram nenhum mal identificável, pudemos observar a origem do problema: a ausência de um órgão vital, o coração.
Não há necessidade alguma de esclarecer que todos ficamos extremamente encantados e desorientados com tal fato, nunca antes observado em toda a história da medicina moderna.
Sem poder fazer qualquer tratamento imediato, optamos por questionar ao próprio paciente, a origem de tal mal.
"Falta-me há dois meses. Foi-me roubado, quebrado e agora se encontra perdido em algum lugar desconhecido, escondido entre as ruínas da vida que não tive".
A maior dúvida entre todas as gigantes dúvidas que se apresentaram após o diagnóstico, foi como tal paciente permanecia vivo. Diz ele que também não sabia, mas que imaginava ser por não ter motivos para morrer. Registramos aqui suas exatas palavras após tal pergunta: "Pensei nisso também. Vai ver que já estou morto e não percebo. Acho que ainda respiro, ainda penso e ainda 'sobrevivo' (notamos uma certa ênfase no 'sobre') por não ter motivos para cair morto. Não, não morro. Não morro porque meu coração despedaçado e perdido ainda bate em algum canto desta Terra, no chão no qual foi jogado por aquelas mãos tão lindas que eu tive o prazer de segurar uma vez".
Tratando-se de um "furto", ou até mesmo de um sequestro de coração, decidimos encaminhar o caso à polícia. O paciente antes de ser interrogado pelos policiais, ainda disse em alto e bom som, mas sem endereçar tais palavras à ninguém "Se é para morrer, prefiro morrer nos teus braços".
A polícia, talvez mais desorientada do que nós naquele primeiro momento, nos devolveu o paciente dizendo tratar-se de um assunto meramente médico. Tal paciente havia entregado de boa vontade seu coração e não poderia, portanto, reavê-lo a força. Além disso, somente o próprio paciente poderia encontrar este coração, não tendo a polícia nada que ver com o assunto.
Levemente indignado com o fato de o paciente saber a localização de tal coração, até onde sabíamos necessário a vida, perguntei-lhe o porquê de ele não poder reavê-lo. Diz-me o paciente que já não lhe pertence tal coração e que, dentro de si, ainda tem esperanças de que ele esteja bem guardado.
Baseado no que pudemos observar em relação a tal paciente, acreditamos que ainda lhe restem anos de sobrevida, na qual poderá ainda ter suas ilusões de felicidade e, quem sabe, até possa ter umas felicidades reais. Sua única esperança de vida (e não sobrevida), porém, é que seu coração lhe seja devolvido ou lembrado.
Não podendo deixar por mais tempo a cavidade torácica vazia, optamos por colocar no lugar onde estaria o coração uma pedra, que ocupe o espaço e que evite maiores danos. Contamos com a frieza de tal pedra para evitar que tal paciente novamente se machuque, mas não acredito que isto possa ajudar a curá-lo. Além disso existem grandes possibilidades de esta pedra machucar outros corações com os quais o paciente faça contato a partir de agora.
Terminamos este registro de atendimento com mais uma declaração marcante deste paciente que acreditamos ser extremamente relevante ao seu caso: "Sabe doutor, eu fui enfeitiçado. Aqueles olhos verdes me fizeram perceber que eu queria ser muito feliz. No fim acabei-me preso no labirinto daqueles olhos. Creio que não fosse isso, não teria aprendido o que é viver. Viver é acordar mais cedo do que você precisa só pra responder uma mensagem de 'bom dia'. É chamar o que não é seu de seu. É buscar modos de elogiar alguém a cada frase, a cada palavra. Viver é a incerteza misturada com a certeza e com a não necessidade de saber o que é certo. Viver é uma droga doutor. Estou há dois meses na abstinência, mas ainda fico com aquele gosto de quero mais. Mas algum dia eu ainda vou ver aquele pôr-do-sol e vou me lembrar que foi muito bom. E ainda vou lembrar que eu estraguei tudo, que fiz tudo errado, mas que possivelmente se fizesse certo também não conseguiria acerto maior. Só fico pra sempre com esta dúvida."
O ser humano é um ser indecifrável, que pode ao mesmo tempo fazer um ato heroico e morrer de medo. Hoje, a grande maioria é movida pelo medo. O medo de encontrar em tantos outros peitos uma pedra a bater, o medo de perder os motivos e o estranho medo de tentar reavê-los (que deriva do medo de ferir alguém mais ainda). O medo de que nos falte e o medo de que nos sobre. E acima de todos estes medos está o medo de amar, responsável pelas tantas pedras que hoje ocupam a cavidade torácica de inúmeros homens e mulheres.
Tenho medo.
O que será de mim?

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