Não há necessidade alguma de esclarecer que todos
ficamos extremamente encantados e desorientados com tal fato, nunca antes
observado em toda a história da medicina moderna.
Sem poder fazer qualquer tratamento imediato,
optamos por questionar ao próprio paciente, a origem de tal mal.
"Falta-me há dois meses. Foi-me roubado,
quebrado e agora se encontra perdido em algum lugar desconhecido, escondido
entre as ruínas da vida que não tive".
A maior dúvida entre todas as gigantes dúvidas que
se apresentaram após o diagnóstico, foi como tal paciente permanecia vivo. Diz
ele que também não sabia, mas que imaginava ser por não ter motivos para
morrer. Registramos aqui suas exatas palavras após tal pergunta: "Pensei
nisso também. Vai ver que já estou morto e não percebo. Acho que ainda respiro,
ainda penso e ainda 'sobrevivo' (notamos uma certa ênfase no 'sobre') por não
ter motivos para cair morto. Não, não morro. Não morro porque meu coração
despedaçado e perdido ainda bate em algum canto desta Terra, no chão no qual
foi jogado por aquelas mãos tão lindas que eu tive o prazer de segurar uma
vez".
Tratando-se de um "furto", ou até mesmo
de um sequestro de coração, decidimos encaminhar o caso à polícia. O paciente
antes de ser interrogado pelos policiais, ainda disse em alto e bom som, mas
sem endereçar tais palavras à ninguém "Se é para morrer, prefiro morrer
nos teus braços".
A polícia, talvez mais desorientada do que nós
naquele primeiro momento, nos devolveu o paciente dizendo tratar-se de um
assunto meramente médico. Tal paciente havia entregado de boa vontade seu
coração e não poderia, portanto, reavê-lo a força. Além disso, somente o
próprio paciente poderia encontrar este coração, não tendo a polícia nada que
ver com o assunto.
Levemente indignado com o fato de o paciente saber
a localização de tal coração, até onde sabíamos necessário a vida,
perguntei-lhe o porquê de ele não poder reavê-lo. Diz-me o paciente que já não
lhe pertence tal coração e que, dentro de si, ainda tem esperanças de que ele
esteja bem guardado.
Baseado no que pudemos observar em relação a tal
paciente, acreditamos que ainda lhe restem anos de sobrevida, na qual poderá
ainda ter suas ilusões de felicidade e, quem sabe, até possa ter umas
felicidades reais. Sua única esperança de vida (e não sobrevida), porém, é que
seu coração lhe seja devolvido ou lembrado.
Não podendo deixar por mais tempo a cavidade
torácica vazia, optamos por colocar no lugar onde estaria o coração uma pedra,
que ocupe o espaço e que evite maiores danos. Contamos com a frieza de tal
pedra para evitar que tal paciente novamente se machuque, mas não acredito que
isto possa ajudar a curá-lo. Além disso existem grandes possibilidades de esta
pedra machucar outros corações com os quais o paciente faça contato a partir de
agora.
Terminamos este registro de atendimento com mais uma declaração
marcante deste paciente que acreditamos ser extremamente relevante ao seu caso:
"Sabe doutor, eu fui enfeitiçado. Aqueles olhos verdes me fizeram perceber
que eu queria ser muito feliz. No fim acabei-me preso no labirinto daqueles
olhos. Creio que não fosse isso, não teria aprendido o que é viver. Viver é
acordar mais cedo do que você precisa só pra responder uma mensagem de 'bom
dia'. É chamar o que não é seu de seu. É buscar modos de elogiar alguém a cada
frase, a cada palavra. Viver é a incerteza misturada com a certeza e com a não
necessidade de saber o que é certo. Viver é uma droga doutor. Estou há dois
meses na abstinência, mas ainda fico com aquele gosto de quero mais. Mas algum
dia eu ainda vou ver aquele pôr-do-sol e vou me lembrar que foi muito bom. E
ainda vou lembrar que eu estraguei tudo, que fiz tudo errado, mas que
possivelmente se fizesse certo também não conseguiria acerto maior. Só fico pra
sempre com esta dúvida."
O ser humano é um ser indecifrável, que pode ao
mesmo tempo fazer um ato heroico e morrer de medo. Hoje, a grande maioria é
movida pelo medo. O medo de encontrar em tantos outros peitos uma pedra a bater,
o medo de perder os motivos e o estranho medo de tentar reavê-los (que deriva
do medo de ferir alguém mais ainda). O medo de que nos falte e o medo de que nos sobre. E
acima de todos estes medos está o medo de amar, responsável pelas tantas pedras
que hoje ocupam a cavidade torácica de inúmeros homens e mulheres.
Tenho medo.
O que será de mim?
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