quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Texto: Corpo e alma

Meu caro, quanto tempo!
Não é? Parece que passou uma eternidade sem a gente se ver?
É mesmo, é mesmo! No mínimo uns quarenta anos, eu diria. Que engraçado, não é?
Ah, engraçado eu não digo. Mas são coisas da vida também.
Sim, sim. A vida...
Hahaha, já vai reclamar?
Não, reclamar não. Só fazer algumas observações, nada demais.
Pois bem, o que você achou?
Ah, para falar a verdade nem deu pra reclamar... Dois filhos, uma família que me amava, não me divorciei, viajávamos bastante... Os filhos cresceram, viraram grandes pessoas, por mais que eu ainda tenha demorado a perceber que já não eram mais crianças. Só no meio de tudo isso me faltou tempo pra descobrir o sentido de tudo isso.
Ah, entendo perfeitamente. Também não reclamo.
Não? Sem a menor vontade de ofender, mas você não parecia ser a pessoa mais bem resolvida...
Questão de ponto de vista, meu velho. Questão de ponto de vista. Não estudei, não me casei, não tive filhos dos quais eu tenha ficado sabendo. Economicamente passei por períodos difíceis, mas sinto que me enriqueceram como pessoa. No fim, acabei sendo feliz. Me apaixonei e vivi os últimos anos com uma pessoa que me amava. Quanto ao sentido, em algum momento ainda cedo desisti de procurá-lo e fiz questão de obrigá-lo a me procurar. Por fim, me encontrei completamente livre de dúvidas existenciais, vendo na própria existência a resposta para tudo.
Entendo, entendo. E deste novo estágio, gosta?
Não desgosto, tenho que dizer! Minha compreensão parece ridiculamente mais aguçada e eu me divirto a observar os mais jovens com suas besteiras e desesperos. Lembram-me de mim, de certo modo.
Também me agrada, compadre. E agora que a vida passou fico feliz de poder rever os melhores momentos e perceber que não são poucos. Cada coisa minúscula que a nossa memória era incapaz de guardar...
Realmente, me incomodava a incapacidade de manter o conhecimento na cabeça. Agora sei que a única solução sempre foi deixá-lo fora da mesma.
E para amanhã, tem planos?
Amanhã? O que tem amanhã?
Ah! Morre e nem assim conserta o problema de memória? Dia de Finados! Como é que pode esquecer?
Ah sim, Finados. Para falar a verdade é um dia que nunca celebrei como vivo, não planejo celebrar como morto. Só mais um dia comum, de observação e reflexão. Já você imagino que tenha planos, certo? Senão nem perguntaria.
Sim, sim. Costumo passar com a família. Eles vão visitar o local onde já esteve meu corpo e onde agora está minha ossada e eu aproveito e me visito também. Só para encontrar, dar uma olhada em como estão.
Entendo. Fui cremado. Minhas cinzas jogadas ao vento. Mas de qualquer forma minha família já mal existia e mesmo se existisse dificilmente me visitaria. Não me lembro de eles terem visitado qualquer túmulo.
Bom, tenho que ir.
Sim, claro, não me deixe atrasá-lo.
Nos vemos por aí?
Ah, quem é morto sempre aparece! Qualquer hora nos encontramos.
Hahaha! Certamente.
Inclusive me lembre de te contar umas histórias.
Que tipo de histórias?
Ah, umas que vivi. De corpo e alma. Nessa situação tenho finalmente liberdade para me desfazer dos segredos.
Sim sim, claro. Nos vemos em breve.
Nos vemos, nos vemos.
(o vento levanta as folhas secas para depois devolvê-las ao chão)

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