sábado, 1 de fevereiro de 2014

Texto: Licença poética

Marquei outro dia de tirar minha licença poética.
Saí de casa mais cedo, levei os documentos necessários e uma foto 3x4, como dizia no site. Tenho que dizer que estava um pouco nervoso.
Chego no balcão, digo que reservei um horário. Um gordo me olha por trás das lentes de um óculos horroroso. Nunca antes havia reparado num óculos. Horroroso. Manda-me sentar.
Sento-me num dos inúmeros bancos em frente ao guichê inicial. Seguro na minha mão uma senha que o gordo me entregara. 23307. Procuro o painel de senhas. 23112. Me contento com a espera.
Os bancos não estão vazios. Atrás de mim senta-se um velho com cabelo até os ombros. Na frente uma hipponga. Mais algumas pessoas, todas tão diferentes...
Os números passam com certa velocidade. Boa parte dos chamados já não estavam mais lá no seu horário de atendimento. Assustados pela burocracia, imagino.
Abro um livro. Leio umas páginas. Fecho. Abro meu caderno. Escrevo umas frases. Fecho. O tempo não passa. Devia ter tomado café da manhã.
Passada uma hora e meia, vejo meu número ilustrando o painel eletrônico. Mesa 06. Levanto, localizo a mesa, ando. Espero o recém-atendido se retirar e me sento numa cadeira bastante desconfortável e com aparência suja. Uma mulherzinha senta do outro lado da mesa. Parece ter uns quarenta, mas acho que deve ter uns trinta. Talvez menos. Tem cara de ser uma daquelas jovens com cara de velhas. Se bem que se é possível perceber que é jovem, talvez a cara não seja tão de velha. Não sei, é estranho.
"Nome?"
"Leonardo", respondo. Ela digita. Balbucio e soletro o sobrenome.
"Senhor Leonardo, eu vou precisar que você me diga seu endereço, data de nascimento, número do RG, CPF e nome dos pais". Eu fico pensando que já preenchera tudo aquilo na hora de agendar o atendimento, mas repito com calma e espero que ela digite na sua telinha.
Leio seu crachá. Gisele.
Sem levantar os olhos da tela ela me faz uma pergunta interessante.
"Leonardo, o que o senhor tem contra a língua portuguesa?".
Eu demoro a responder. Não entendo direito. Como a resposta não vem, Gisele pára de encarar o computador e olha para mim. Só mais uma questão, burocracia, para ela não deve parecer estranho.
Tento explicar.
"Contra, nada. Na verdade vejo muita beleza na língua portuguesa e mais beleza ainda em suas flexões informais e fora da regra culta!"
Ela olha pra mim como quem olha para um jumento.
"Posso escrever que você é contra a regra culta? Não cabe tudo isso no quadradinho aqui."
Fico confuso. Para evitar mais constrangimentos, digo que sim. Grande mentira! Não desgosto da regra culta, só vejo valor também na regra não-culta! Será tão difícil de entender?
Ela digita mais algumas coisas e pede meus documentos. Entrego, ela avalia um por um, retém as cópias e me devolve os originais. Ainda bem que lembrei de levar cópias.
Por fim pede-me a foto. Olha por algum tempo.
"Leonardo, onde o senhor tirou essa foto?"
Acho engraçado como ela se alterna entre os termos "você" e "o senhor". Formalidade mais inconstante...
Respondo que tirei na esquina. Não me lembrava do nome do lugar. Ela pega uma régua. 3x4. Confere.
"Da próxima vez tenta trazer uma foto vestido melhor, pode ser?"
Faço que sim com a cabeça. Próxima vez. Pff. Termo engraçado de se usar.
Ela mexe mais um pouco no computador, levanta e leva a foto consigo. Demora uns dois ou três minutos. Volta com uma carteirinha.
"Leonardo, essa vai ser sua carteira provisória, a definitiva fica pronta em uns dois meses, a gente liga pra avisar. Enquanto não chegar a definitiva não pode cometer infrações porque senão tem que começar o processo do zero. Entendeu?"
Faço que sim. A mulher ensaia um sorriso.
"Boa sorte!"
Que sorriso feio. Não sei se já tinha visto um sorriso mais feio. Burocrático, uma felicidade obrigatória meio maquinal, muito estranho. Murmuro um obrigado e olho para minha nova carteirinha. Foto horrorosa.
No que começo a ir embora, o velho faz questão de apertar minha mão. Eu sorrio, prefiro não perguntar ao que se deve a gentileza. Deve ter me confundido com alguém. Já aconteceu antes.
Saio para a rua. O mundo me pertence.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Texto: E onde é que você estava?

Saudades dos meus tempos de guerra. Já cansei dessa minha paz inventada.
Saudades da minha independência. Saudades das minhas brigas e das minhas dúvidas que ainda nem foram embora. Saudades dos socos que não dei e dos dois ou três que dei e nunca me arrependi.
Saudades dos momentos raros em que sentia medo de nunca mais sentir nada. Saudades dos momentos nunca alcançados nos quais não sentia nada mesmo.
Saudades do antes. Bem antes. Anos antes. Das minhas brigas nunca resolvidas e das brigas que nem sequer foram brigas. Devia ter brigado mais. Devia ter gritado, ofendido, xingado. Devia ter feito de tudo enquanto ainda era ouvido. Mas agora não importa mais, estou curado e ainda vou vencer.
Uma vez senti saudades de mim mesmo. Achei que tinha me perdido em alguém. Me encontrei escondido num dos cantos do meu quarto, atrás da minha estante de livros. As saudades se curam.
As saudades se curam de dois jeitos distintos. Um deles é o mais básico e óbvio: a reaproximação. O outro é mais difícil: o ódio. Houve tempos em que odiei meu ódio. Agora me reaproximo dele. Talvez sentisse saudades.
Não importa. No fundo é tudo mentira. Nada existiu. Minhas saudades são todas fictícias.
Saudades dos meus tempos de paz. Ou de guerra. Ou nem sei. Mudei de tempo e não sei qual passou e qual começa. Não importa também. Aos que ficam, adeus. Pra mim já chega. Meu único desejo é o dom de esquecer.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Texto: Anacrônico

Estou cada vez mais convencido de que você é uma dor crônica. O pensamento me surgiu numa manhã qualquer em que acordei com a alma doendo do sonho que recém-acabara e achei tal dor um tanto quanto fora de tempo, anacrônica. Me veio como única explicação a possibilidade de você não ter sido dor isolada, mas sim ser dor crônica que venha a me perseguir ainda por algum tempo.
Agora pensando bem, pode bem ser que no momento em que você rompeu nossa ligação eu tenha acabado por romper algum ligamento dentro da minha mente ou do meu coração. Ou dos dois. Ainda não me decidi qual dos órgãos culparei pelos sentimentos que, num geral, preferia não ter. Talvez culpe os dois. Daí eles que se decidam em como vão dividir a culpa e eu não tenho que me preocupar em não magoar ninguém.
Sabe, às vezes eu queria que você fosse só uma dor nas juntas. Daquelas que ainda por cima ajudam na previsão do tempo, coisa de velho mesmo. Mas você insiste em ser essa dor chata, daquelas que a gente demora um pouco pra encontrar o foco, tem que ficar tateando por um tempo, sei lá. Vai ver a dor sou eu e é você quem me sente, periodicamente, cada vez um pouco mais forte. Umas pontadas de Eu na sua alma. Ou no seu corpo. Ou nos dois. A parte do corpo soou meio errada. Pontadas de Eu no seu corpo. Hahaha. Que sujo.
Eu li em algum lugar que quando se tem uma parte do corpo amputada você ainda sente essa parte por um tempo. Tipo, coçando, sei lá. Por quanto tempo será que você sente quando um pedaço da sua alma se levanta e sai sem nem dizer adeus?
Talvez tenha dito adeus. É. Não sei. Acho que o problema é que o seu adeus tem sido um tanto quanto até logo. Daí a gente fica pensando. Eu fico pensando. Não sei porque tenho essa mania de me colocar no plural. Vai ver veio junto com a mania de te colocar em segunda pessoa!
Nem tinha percebido! Porque te coloco sempre em segunda pessoa? Não estamos dialogando (hahaha. haha. ha. ha. ha. #risadadeprimidadequemgostariadeestardialogando). Não sei, vai ver que quando você deixou de ser parte de mim eu acabei por te transferir para segunda pessoa, uma vez que é mais perto da primeira do que a terceira. Não sei se essa frase fez sentido. Na minha cabeça fez.
Bom, vou encerrar aqui. A dor é crônica mas o texto é bem anacrônico. Vai ver meu tempo parou e ninguém percebeu. Vai ver, não sei. Qualquer dia a gente se cruza na rua, sei lá. Eu olho bem nos seus olhos, percebo que você vai fingir que não me conhece e finjo não te conhecer também, pode deixar. Provavelmente olho pra trás, paro e fico te vendo andar. Se passar uma velhinha ainda pode ser que me chame de tarado. Talvez murmure uma despedida. (Eu, não a velhinha.) Talvez uma maldição. (Ainda eu.) Um xingamento. (Eu. Mas talvez também a velhinha.) Vai depender do humor. Mas essa dor que ainda não tive, de te ver andando pra longe sem olhar pra trás, dói muito. Ou doerá muito. Sei lá. Lembre-se de colocar meu coração no correio quando chegar em casa. Eu fico na torcida para que este se extravie por aí. Não quero me dar ao trabalho de consertar o estrago que você fez nele.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Excerto Inútil: Precisamos Conversar

Acordei pensando em você, sei lá.
Quando a gente brigou eu acho que fiquei meio desnorteado. Uma vontade de gritar pra todo mundo, de me sentir melhor de algum jeito. Olhei em volta, acho que eu queria fazer uma cena. Não sei.
Aquele seu apartamento que tinha sido tão meu nos últimos dois meses agora contrastava com a situação. Tão harmônico, calmo... Olhei em volta por alguma coisa que pudesse pegar, meio que gritar "é, isso aqui é meu e eu levo comigo!", só pra não sair de mãos vazias. Não vi nada. Nem os lugares nunca me marcaram muito nem eu nunca cheguei a marcar muito os lugares, sei lá. Naquele dia o apartamento era tão seu que assustava.
Fui até o quarto, tirei minhas coisas das gavetas. Deixei-as abertas, como que numa revolta infantil, numa vontade de instaurar um clima de guerra naquele local pacífico. Olhei em volta de novo. Tinha que levar alguma coisa! Qualquer coisa!
No fim, enchida a mala com as minhas nem tantas roupas, só peguei o despertador, única possessão minha compondo aquela harmonia quase agressiva. Não acho que tenha feito falta.
Acordei pensando em você. Despertador filha da puta. Em quinze minutos levanto.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Texto: Cena

Fala.
Não falo.
Fala.
Não falo.
Fala.
Não falo.
Fala.
Não falo.
Tá bom então, porra.
Pff.
Ah, qualé? Tipo, parece até que não sabe que eu te conheço.
Não conhece!
Conheço.
Não conhece!
Conheço.
Não conhece!
Conheço.
Tá bom, conhece. Mas quando eu mudar já não vai conhecer.
Pff.
Vai se foder.
Mano, desabafa. Tipo, se você quer falar só bota pra fora de uma vez!
Não sei se eu quero sua cumplicidade.
Porra!
Porra o que agora?
Tá de zoeira que depois de tudo você ainda fala essas merdas, né?
Não to! Pára de encher.
E faz diferença?
Sei lá.
Diz, foi o que? Coração partido?
Ah, sei lá, despedaçado. Não sei se eu sei direito o que eu sinto.
Entendo...
Isso que me irrita em você! Entende é o caralho, somos pessoas diferentes com emoções diferentes e é puta hipócrita você ficar falando que me entende.
Tá, caralho. Quer que eu fale o que, que não entendo? Que acho imbecil você ficar sofrendo por esse nada? Que te acho uma puta mariquinha ainda por cima filha da puta por descontar em mim?
Vai se foder, vai!
Eu tava dando uma porra de um exemplo! Não vai partir daí pra ficar magoada agora!
Quer mesmo que eu fale?
Quero, fala logo, cara.
Tá, eu falo então.
Finalmente!
Vai me deixar falar ou não, porra?
Fala. Desculpa.
Sei lá. Doeu mais do que eu achei que ia doer. Do que era pra doer. Doeu até mais do que doeu. Você sabe que eu me desconstruo fácil... Tipo, não teve como, desmoronei. Daí ainda me vi espelhada, não gostei, fiquei com medo. Isso me fez muito mal.
...
Acho que eu quero é deixar de ser quem eu sou, só por um minuto...
Mas você é perfeita!
Viu? É disso que eu tô falando!
Do quê? O que que eu disse?
Você vai me mostrar exatamente o que eu sou. Vai me servir de espelho. Mas porra, já disse que eu não quero ser quem eu sou!
Como é que era aquela frase imbecil mesmo?
Que frase imbecil agora?
"Be yourself, everyone else is already taken.". Acho que é mais ou menos isso. Não lembro quem escreveu.
Oscar Wilde. E vai se foder com essa auto-ajuda barata, sério.
Quer que eu fique em silêncio?
Foda-se. Quero é distância.
Vai, vem aqui. Eu fico em silêncio, pode deixar.
*Ombro com ombro. Cabeça no ombro. Algumas lágrimas. Um braço passado de modo acolhedor para o outro lado.*
...
Shh, tá tudo bem, tá tudo bem.
...
Chorar faz bem... Amanhã é um novo dia.
*Soluçante* Mas eu queria é o ontem, sabe? Fazer tudo diferente...
Shh, vai melhorar, vai melhorar.
Ódio. Indiferença. Amor. O que será? Tomara que não seja indiferença.
Shh, se acalma.
Ódio. Indiferença. Amor. Qual será qual?
Como assim?
Ah, sei lá. Tá tudo confuso. Três sentimentos diferentes tão parecendo tão iguais pra mim agora...
É medo.
Não tenho medo.
É sim. É medo de não sentir mais nada.
Por que é que você me lê tão bem?
Porque você é o meu livro favorito.
...
É um sorriso isso que tá aparecendo?
Bobo.
Tá, desculpa. Vamo ficar em silêncio aqui.
*O silêncio fica por um tempo.*
Eu tenho que ir.
Ir aonde?
Ah, um negócio do jazz. Fiquei de jantar com as pessoas lá.
Tá bom. Quer que eu te leve?
Nah, pode deixar.
Ei, relaxa.
Já tô relaxada.
Sei... Depois a gente se fala. Vou pra casa.
Tchau.
Tchau.
*Abraço longo, beijo no rosto.*
*Sussurrado* Fica bem.
*Afastam-se.*

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Texto: Maldição

Fui teu espelho. Quebraste-me. Terás 7 anos de azar. Ainda busco refletir (aos cacos) o tempo que custa a passar.
(Asas de morcego, teias de aranha. Antes não sabia, mas o teu amor arranha.)
Maldigo-te: Que por me escapar na tua forma física não possas escapar jamais aos teus próprios sonhos! Que estes sejam felizes a ponto de tornar cada despertar um pesadelo! Que eu lhe povoe o pensamento e que você perceba que tens a eterna opção de regressar à felicidade que finge repudiar!
Teus feitiços são mais fortes.
(Lágrimas de um amor perdido, pedaços de um coração partido. Quem um dia foi amor, não será só conhecido.)
Com que facilidade rompem-se os laços d'alma que tivemos! Com que desenvoltura finges não me ou te conhecer! Com que força sustentas a farsa que vives! Com que magia negra faz-me sempre pensar em você!
(Palavras de ternura, dias de felicidade. Minha maldição é sentir tanta saudade.)
Fui teu espelho. Quebraste-me. Por ódio à tua própria imagem acabas por destruir os laços que te prendem à realidade. Fui teu espelho. Quebraste-me. Terás 7 anos de azar e eu outros tantos de lembranças mais felizes do que eu gostaria que fossem.
(Confissões engasgadas, segredos compartilhados. Para sempre hão de doer os nossos laços cortados.)
Que existas por tempo indeterminado e que seja incapaz de esquecer as almas que tocaste. Que teu infinito te consuma em fogo lento e que o brilho de tua vida insista em habitar os lugares onde não estiveste. Que tenha a certeza de estar sempre incerta quanto a tudo e que não possas ser feliz na solidão de ser uma só.
(Olhares desviados, sonhos amassados. A memória sempre reina nos corações mais cansados.)
Busca tuas luas, Ismália. Busca teu brilho, tua loucura, tua felicidade. Mas eu te amaldiçoo. Que não possas, jamais, ser verdadeiramente feliz enquanto não obtiver o perdão das almas que deixou. Que a solidão não te baste e que sem um espelho não se possas ver por inteira. Que mudes quem é para descobrir que foi melhor antes. Que qualquer dia acordes pensando no que fez da tua vida e saibas exatamente onde errou. Que chore então as lágrimas do arrependimento e que lide com a irreversibilidade dos ferimentos de alma.
Fui teu espelho. Quebraste-me. Mas também se rompeu no processo.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Texto: Veja bem

A gente se vê por aí, andando na rua se vê.
A gente se vê por aí sem nunca marcar de se ver.
Se a gente se vê, certo dia (bem pode acontecer)
Pode ser que a gente pudesse um dia marcar de se ver.
E se um dia andando na rua meu olho direito te vê
(e o esquerdo depois alertado logo já encontra você)
Não se faça de desavisada quando eu for falar com você
Falando que a gente podia um dia marcar de se ver
Mas se o meu olho te perde e eu não encontro você
Andando na rua ou no parque, apressada, sem tempo a perder
A gente se vê por aí, andando na rua se vê
A gente se vê por aí sem nunca marcar de se ver.

Viu só?